A palavra é monstruosa, mas já foi usada a torto e a direito na campanha eleitoral e vai dominar as entradas do léxico político nacional nos próximos tempos. É a famosa "governabilidade" que, em português corrente, significa "quem é-que-se-chega-à-frente-para-dar-o-apoio-parlamentar-que-falta-ao-PS-para-se aguentar".
Ontem, não havia respostas e ninguém admite que, a curto prazo, possam existir soluções. Os partidos que não emergiram na derrota mergulharam na reflexão e cada um tenta perceber o passo seguinte do movimento dos outros. A política entrou no modo "jogo de sombras" em que toda a gente "vigia" os passos de toda a gente - honesta e metaforicamente, em princípio. José Sócrates espera que Cavaco Silva o nomeie para formar governo e, de seguida, passa às conversações com os outros partidos.
Foi o próprio Sócrates que deliberadamente não excluiu que destas negociações possa vir a resultar uma coligação governamental. Disse-o quando anunciou que, só depois dos tête-a-tête com os restantes líderes partidários, o país "ficará a saber qual a solução governamental que poderá sair destas consultas". Se o primeiro-ministro admite, pela primeira vez, "uma solução parlamentar" que não o previsível governo minoritário sustentado em acordos pontuais, ninguém acredita que o próximo governo venha a ser de coligação. Por uma razão simples: ninguém quer casar com a carochinha.
Uma coligação formal de governo é recusada por todos os partidos da oposição, que temem ficar vinculados à política que combateram até domingo passado. Mas se muito dificilmente sairá destas eleições uma coligação formal de governo do PS com outro partido - até porque uma solução inclinada para o bloco central teria sempre que esperar pela previsível sucessão no PSD -, os acordos de incidência parlamentar parecem hoje mais difíceis do que antes da campanha eleitoral. O ambiente político entre o PS e o Bloco de Esquerda deteriorou-se na sequência da campanha, além de que, juntos, socialistas e bloquistas não conseguem os 116 deputados essenciais à maioria absoluta.
Uma maioria de esquerda teria necessariamente que incluir o PCP e, entre os socialistas, mesmo os mais entusiastas defensores das coligações à esquerda sabem que elas são rigorosamente impossíveis: compatibilizar PS e BE já é tarefa para os Altos Estudos Militares, mas um acordo parlamentar entre PS, BE e PCP, o rival directo do Bloco, é puro cenário de guerra.Segue-se, na teoria das alianças, a possibilidade de um acordo parlamentar com o CDS. Paulo Portas está em reflexão sobre "o que fazer", com duas certezas: animado com o sucesso das legislativas, não fará nada que prejudique o crescimento do CDS para os terrenos do PSD. Dar o aval a um governo PS está longe de ser o melhor arranque para uma campanha eleitoral de um ciclo que todos os actores políticos prevêem ser de duração curta.
E, resta, finalmente o Bloco Central. A primeira pessoa a avançar para essa hipótese, sibilinamente, foi o Presidente da República no discurso do passado 25 de Abril, quando apelou aos partidos do centro político a estabelecerem acordos em várias grandes áreas do regime para assegurar a dita "governabilidade". Em outras ocasiões, Cavaco Silva seria mais explícito, como quando visitou a Áustria e fez questão de explicar aos jornalistas as informações que recolhera sobre o funcionamento do bloco central nesse país.
De uma maneira ou de outra, vários senadores do PS e do PSD já vieram a público admitir essa solução, caso nenhum dos principais partidos conseguisse obter a maioria absoluta. No PS, Jorge Sampaio e Ferro Rodrigues admitem a solução; no PSD, António Capucho e João de Deus Pinheiro consideraram-na a mais viável. Só que o governo vai ter que ser formado antes de se saber qual é o PSD que vai ser o interlocutor válido para este ciclo - Manuela Ferreira Leite deixou em aberto a possibilidade de saída a seguir às autárquicas. Além de que, com Manuela, e no ponto em que estão e sempre estiveram as relações entre as duas lideranças do PS e PSD, qualquer bloco central parece impossível.
Mas o PS não tenciona partir para as conversações numa posição diminuída, antes pelo contrário. A ideia é confrontar a oposição "com as suas responsabilidades" - o PS tem a responsabilidade de governar, a oposição de não deitar o governo abaixo no momento seguinte.
José Sócrates perguntará a cada um dos partidos o que é que quer para viabilizar um governo socialista. O que significa deixar passar o programa do governo - ou, numa explicação institucional, não votar a favor de uma moção de rejeição que algum dos partidos da oposição decida apresentar. E, pior, significa dar o aval ao orçamento de Estado de 2010 e de 2011, em negociações que necessariamente vão ser a doer. A própria oposição vai gerir todo este processo com os cuidados suficientes para não encostar José Sócrates ao papel da vítima a quem não deixam governar. Mesmo que não seja possível conseguir um acordo formal com qualquer força política, todos os partidos vigiar-se-ão florentinamente e concorrerão para que apareça "alguém" a não deixar Sócrates agarrado ao papel de vítima. Eleições na Primavera não são uma boa notícia.
in Jornal "i"
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